Remadores desafiam tempestade na Costa dos Naufrágios


Sob ventos de mais de 100 km/h aventureiros enfrentam forte ressaca que castigou a costa do Brasil

Por Márcio Bortolusso

Um ciclone extratropical e uma forte frente fria produziram uma das mais destrutivas tempestades das últimas décadas do Sul e Sudeste do Brasil, que castigou 1.300 quilômetros de litoral com ventos de mais de 100 km/h que formaram ondas de até 5 metros de face em algumas áreas.

Apesar de lamentar pelos prejuízos, na vida o que gera caos para alguns pode ser a salvação para outros. Então, enquanto o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil atendiam centenas de ocorrências – casas soterradas, quedas de árvores e estruturas públicas, deslizamentos de terra, alagamentos com carros arrastados, destelhamentos, rodovias interditadas, balsas paralisadas, serviços de energia e telefonia interrompidos, etc. – eu e a também atleta-documentarista Fernanda Lupo decidimos encarar esta histórica tempestade buscando evoluir ainda mais na véspera de uma ousada expedição que já consumiu cinco anos de preparativos.

Para apimentar este improvável treino, mais do que apenas sairmos para “remar durante uma tempestade” aproveitamos para realizar uma sessão de Rock Gardening na Costa dos Naufrágios, uma das áreas mais críticas para a navegação da costa brasileira, situada ao sul do Arquipélago de Ilhabela, zona constantemente açoitada por frentes frias poderosas e mal afamada por ser um cemitério de navios.

Modalidade recente, o Rock Gardening lembra a descida de rios e corredeiras, mas na Canoagem Oceânica de Águas Brancas (como chamamos a modalidade no Brasil) a curtição é criar desafios por entre as ondas em um “jardim de pedras” no mar, cruzando passagens estreitas ou varando sobre blocos afiados brevemente cobertos pela espuma. Trata-se de uma das vertentes mais extremas e menos conhecidas da Canoagem, o que infelizmente significa raros praticantes e maior risco. Após alguns convites e desistências por fim “sequestramos” o remador Evaldo Plado que topou superar os seus limites e reforçou a segurança do nosso time.

Desconhecendo os minuciosos, particulares e exigentes preparativos de uma expedição, talvez algum desavisado possa achar nossas escolhas inconsequentes, mas assim como um remador olímpico precisa se dedicar para atingir o nível de uma Olimpíada, precisamos treinar inúmeras técnicas exaustivamente, às vezes em duras condições para nos prepararmos para os piores cenários. E o que pode parecer insanidade, é o resultado de anos de treino, uso de bons equipamentos (dispositivos satelitais, vestimentas com tecnologia Gore-tex, etc.), estudos que vão da meteorologia à sobrevivência ao Ar Livre (ou da Medicina à Navegação cartográfica) e domínio sobre diversas técnicas específicas (salvatagem marítima, etc.). Afinal, abrir mapas e sonhar com novos desafios é o mais fácil da brincadeira.

Por entre as muralhas da Costa dos Naufrágios

Segundo a Escala de Beaufort uma “tempestade” possui velocidade entre “89 e 102 km/h”. Neste dia meteorologistas divulgaram rajadas de “103,7 km/h” na zona mais abrigada de Ilhabela (oficialmente “95 km/h” pelo CPTEC/INPE), mas como estávamos na face oceânica do arquipélago mais exposta ao severo Quadrante Sul provavelmente o vento ultrapassou estas marcas e gerou uma destrutiva “tempestade violenta” – “grau 11” em uma escala que vai até 12 (“furacão”). Um espetáculo inesquecível que mesclou tesão e tensão sob clima patagônico: ondas enormes explodindo nas pedras como dinamites, formando leques de 10 metros de altura, sob um som capaz de deixar qualquer marinheiro preocupado, com o mar parecendo tomado por milhares de ursos polares furiosos e frio a ponto de eu ter remado com uma roupa térmica por baixo de um neoprene.

Como muralhas de água salgada enfrentadas em um sonho quixotesco, quando as maiores séries entravam em cerca de dez segundos eu precisava repetir uma série de ações para não bater no fundo rochoso ou ser arremessado contra a costeira: memorizava as pedras da área, remava com “quase” toda a minha força (reservando algo para uma contingência), penetrava a parede enchendo os pulmões, emergia do turbilhão equilibrando com “apoios” de remo, afastava as costelas das rochas mais próximas e recomeçava esta sequência até passar as piores cinco ou seis ondas que surgiam a cada três a cinco minutos.

Pancada, paulada e tapa na cara foi o cardápio deste dia, mal sobrando tempo para descansar ou me reposicionar em locais seguros antes de ser engolido e arrastado por uma nova massa de espuma para áreas tão rasas que deixaram cicatrizes em meu casco.

Me sentindo pesado e descoordenado, com a impressão que os meus bagageiros estavam com água, mantive o foco no mantra “não vire, se virar não ouse errar o rolamento, não vire…” Rapidamente esgotado diante da força da natureza, com o peito em chamas e sem energia para um simples rolamento, quando a tempestade chegou ao seu ápice só me restou retornar para a terra firme.

Sob a tênue linha que divide a segurança e os riscos reais, sem dúvida foi uma experiência que eu jamais esquecerei, que exigiu o máximo do meu conhecimento e me ensinou e fortaleceu mais que uma centena de remadas sob céu azul.

Vídeo deste dia épico

Agradeço ao anfitrião Netuno pela festa memorável e as marcas Gore-tex e Windstopper pela ótima parceria nestes últimos 10 anos, fundamental para a realização dos meus maiores sonhos. Com a certeza de que muitas vezes os piores dias são os melhores, ótimas aventuras para todos!

– Márcio Bortolusso é explorador e documentarista de Aventura, Natureza e Cultura Regional há mais de 20 anos (www.photoverde.com.br).