Travessia no Vale do Ribeira passou por Barra da Juréia, Iguape-SP e Cananéia-SP em 2 dias.
Conheci o Orlando em um curso da Aroeira Outdoor, na Represa Atibainha. Quando ele se apresentou dizendo que vivia em Cananéia fiquei contente em saber que ganharia um companheiro de remadas no Vale, pois meus pais já viviam por aqui e mais tarde, viria eu a morar também.
Fizemos algumas remadas esporádicas nos últimos tempos. O Orlando, como ex-velejador, desde a primeira remada em Cananéia, até a barra do Pereirinha, sempre demonstrou uma cautela muito grande com relação à previsão de ventos e tábua das marés, mesmo que em região abrigada.
De início achava certo exagero, mas nunca comentei nada. Até que na volta da primeira remada da praia do Pereirinha (Cananéia), até o Morro São João, menos de 6 km, senti na pele o que é ir contra a maré, mesmo com vento favorável. De lá pra cá o aprendizado foi crescendo graças ao respeito por esses amigos, instrutores experientes, conversas com caiçaras / pescadores e penso que apesar de a canoagem oceânica ou de travessias ser uma atividade ancestral, prosaica, existem dois tipos de aprendizado fundamentais antagônicos.
- O aprendizado baseado na própria experiência. Que muitas vezes é formado pelo ego, como há em atividades de qualquer outra natureza e pode se tornar um perigo para si mesmo.
- O aprendizado coletivo. Daquele se coloca em posição de humildade ainda que se saiba, exerça a capacidade de confirmar, de ouvir novamente, de obter outra perspectiva. Este aprendizado sem dúvida impacta em uma evolução muito mais rápida e com menos chances de acidentes no mar.
Um dos métodos da ACA (American Canoe Association), é de que o aprendizado é melhor fixado se for vivenciado, ou seja, que de alguma forma o aluno possa validar a teoria. Assisti a alguns cursos do Christian Fuchs e em dois deles fui assistente. Era engraçado quando após a explicação de como segurar o remo, a explicação hidrodinâmica da pá eu notava alunos penando tentando remar com as pás invertidas e ao tentar ajudá-los era prontamente repreendido pelo Fuchs, que dizia: “Se você falar que tem que inverter as pás, daqui 5 minutos eles errarão novamente.”
Durante uma circunavegação da Ilha Grande-RJ com um grupo, ao sair do continente em direção à ilha, quase duas horas de remada com pequenas ondulações no vão que separa Angra da Ilha, meu caiaque parecia um João Bobo. A proa estava pesada demais, pois na pressa tinha colocado uma sacola com jantar de uma noite do grupo, com dois abacaxis e mais um saco de roupas na proa, deixando a popa com muito menos peso. O vento atingia o caiaque lateralmente fazendo a proa em formato de V, já mais afundada interagir de forma desordenada às ondulações e ao vento.
O Fuchs já tinha notado isso em terra e deixou eu ter a triste experiência de comandar o João Bobo durante duas horas, tendo que corrigir o rumo a cada instante. Quando o questionei disse que daquele dia em diante eu nunca mais distribuiria o peso de qualquer jeito no caiaque. Claro que esse tipo de didática nunca é empregada em situações que possam oferecer risco.
Com os alunos com remo invertido era a mesma situação. A explicação já fora dada e após um tempinho remando com o remo invertido, ele olhava e perguntava como estava a remada e após isso pedia para inverter o remo e notar se melhorava ou piorava.
Pode parecer banal, mas são essas pequenas experiências que enriquecem o aprendizado e por mais simples que seja a atividade, existe uma séria de técnicas e pequenos ensinamentos que podem evitar um passeio virar uma aventura.
O Brasil não possui uma forte cultura na canoagem de travessia. É incomum estar em qualquer praia ou ilha do litoral brasileiro e ver algum sujeito viajando com um caiaque. Algo que é relativamente comum em muitos países do mundo, inclusive, Chile, Argentina que possuem uma cultura muito forte na canoagem de travessia.
Talvez por isso e por um trauma com caiaque com cockpits fechados, por causa dos antigos caiaques Mistral que era um modelo de lazer que tinha um cockpit muito estreito e por conta disso e de não haver informação na época de como ejetar, alguns remadores morreram afogados porque ficavam travados ao tentar puxar as pernas inclinando o tronco para frente, o inverso do que deveria ser feito.
Esse foi o último final de semana do ano possível fazer uma pequena travessia de caiaque. Tudo muito em cima da hora, planejado meio nas coxas, correria com trabalhos, imprimi a tábua e a previsão do WindGuru uma hora de sair pra Iguape na sexta-feira à noite.
Ainda que não fosse uma grande travessia e que eu estaria em um local abrigado, ficaria horas sem possibilidade de abrigo em caso de problemas e nesse caso é sempre bom estar preparado, pensar desde a possibilidade de passar mal, ter uma avaria no barco, uma desidratação ou pegar uma condição desfavorável e ter que pernoitar no meio do mato em algum lugar remoto, desabitado. Nesse quesito gosto de estar preparado ainda que seja um passeio de um dia. Não planejava acampar, mas levei isolante, rede c/ mosquiteiro, saco de dormir, lona e uns bons metros de cabos.
Adoro o lagamar do Vale do Ribeira. Apesar do assoreamento causado pela barragem do Rio Ribeira na época em que o vale era uma potência mundial em produção de arroz, escoado pelo rio, acho um trajeto que apesar de abrigado, você precisa respeitar muito as condições, coisa que aprendi com o Orlando e confirmo a cada dia com os locais. Não dá pra vencer no braço, além de analisar bem vento e tábua das marés, é preciso conversar com um caiçara, sujeito que normalmente não teve estudo, te olha nos olhos e tem pleno conhecimento na natureza. O lagamar é o maior parque de mata atlântica preservada do Brasil. Mais de 92℅ da mata atlântica original brasileira se encontra aqui e com uma biodiversidade incrível. Podemos ver guarás, lagartos, savacus, uma infinidade de pássaros, botos, caranguejos vermelhos e entrando em alguns trechos da até pra ver jacaré.
No sábado de manhã, saí da Toca do Bugio (uma espécie de macaco), quase na barra da Juréia, até Cananéia, pernoitando em Pedrinhas (Ilha Comprida), lugar que descobri ser fascinante, um refúgio caiçara como o Marujá, Ariri, que também fazem parte do Vale do Ribeira, na Ilha do Cardoso.
A decisão do trajeto se deu pela ventaroca prevista de leste e que me faria descer soprado pela popa. Apesar do vento, o Rio Ribeira deságua em Iguape então além da maré enchendo ser favorável pela proximidade da Barra da Juréia, ainda havia o fator do Rio desaguando ali um volume de água colossal. Fazendo o percurso invertido eu jamais chegaria.
Saí de Iguape 12:15, horário que começaria a cheia, já com vento de leste, fazendo carneirinhos. Engraçado como a água em Iguape é barrenta e à medida que vamos indo em direção a outra barra, em Cananéia, na enseada dos golfinhos, a água vai clareando até virar um mar prateado, um azul escuro brilhante.
Meia hora após sair senti um formigamento nos pés e atrás das coxas, até que senti que as pernas todas estavam dormentes. Senti isso algumas vezes recentemente ao remar, mas dessa vez já prevendo que deveria ficar 6 horas sentado, remando, tive receio de ter que desistir por conta disso. Tinha acabado de começar a travessia e passava por baixo da ponte que liga Iguape até a Ilha Comprida, via a Igreja do centro de Iguape ao fundo.
Incomodado, estiquei as pernas dentro do barco, fiz alguns movimentos no tornozelo até que melhorou nas ainda não estava bom. Parei um pouco afrente, no Iate Park de Iguape para esticar. Chegando lá conheci um pescador que amarrava o barco, voltando da pesca. Vinha com um saco de manjubas nas mãos. Conversa rápida com o Mauro, que disse que conhecia o Danilo Garcia, que fez Santos — Floripa há pouco tempo. Contou que escureceu e o Danilo estava meio perdido e tentou dormir no Iate Park ou armar a rede ali mesmo, mas não deixaram. Acabou que o Mauro chamou ele pra dormir na casa dele. “Bom menino, corajoso”, disse ele.
Fiz um lanche, alonguei as pernas e senti que precisava urinar antes de embarcar novamente. Ali do lado da areia onde o caiaque estava, numa pequena prainha de menos de 6 metros quadrados, dei uns dez passos para uma pequena moita e de repente minhas pernas atolaram até os joelhos, criando uma espécie de vácuo que impedia que eu saísse dali, impressionante. Tive que deitar de costas, na parte mas firma da areia, um passo atrás de mim, apoiando os cotovelos para conseguir puxar as pernas.
Após o atolamento zarpei com destino a Pedrinhas (Ilha Comprida), 32 km do meu destino inicial. O vento leste aumentou bastante, cerca de 20 nós, com umas rajadas de até 25 nós. Foi perfeito, o caiaque ia surfando as pequenas ondas de vento canal adentro e as pernas pararam de formigar de dormência.
Não existe carta náutica de canal, cheguei a imprimir um mapa do Google Earth e a impressão saiu horrorosa, nem levei. Usei como referência a Ilha Comprida durante todo trajeto, sempre seguindo pela parte mais larga do lagamar e acompanhando a Ilha do lado esquerdo. Por mais que seja um trajeto simples, há algumas entradas e ilhotas que geram dúvidas, que podem deixar a rota um pouco mais longa ou cortar caminho, ou abrigar melhor de vento.
Após poucos minutos comecei a ver cada vez casas mais espaçadas, alguns pescadores de canoa, jogando rede próximo ao capim que cresce na margem do lagamar, brigando com o vento. Até que de repente quase não via mais ninguém por quase duas horas, as casas cada vez mais afastadas, pois a Ilha Comprida se desenvolveu mais do lado da praia e entre Iguape e Cananéia há um longo trecho sem urbanização.
O vento era o mais favorável possível, forte e constante, mas uma hora enche o saco o zunido intermitente na orelha e ficar surfando o tempo todo, esperando a passada de uma onda (swell) pela proa, para sincronizar com a remada e entrar na outra que vem em seguida.
O caminho todo foi assim, com muito vento, paradas a cada quase duas horas para esticar as pernas, comer algo e remar novamente. Cada lugar que parava era atacado por uma legião de mosquitos, desde aqueles atrapalhados que pousa na sua perna e você logo sente quanto o mais demoníaco dos animais que já conheci, a silenciosa, sutil e inescrupulosa mutuca.
Meu destino do dia era a Comunidade de Pedrinhas, bairro caiçara de Ilha Comprida. Escolhi esse ponto porque imaginei que fosse onde a “maré dobrava” como diz na gíria, ou seja, o ponto central do canal onde a influência da tábua da maré se inverte. No outro dia era só eu remar para Cananéia com a vazante. Um pouco antes de Pedrinhas vi uma enorme pedra com um farolete em cima, próxima da margem, como um marco. Em Pedrinhas, soube por um pescador que o Farol da Laje é o marco central do canal, vivendo a aprendendo.
Vi uma capela de repente no meio do nada e aportei para fotografar. Ao descer do barco vi uma infinidade de campas e me deparei com um cemitério à beira-mar. Era o Cemitério dos Índios, uma antiga vila de pescadores cheia de mistérios e lendas.
Finalmente já eram 18:45 quando cheguei em Pedrinhas. Aportei no cantinho pois haviam muitos barcos à motor chegando da pescaria. Lá é um lugar turístico e muita gente de São Paulo e interior guarda barco de pesca. Eu saí de Iguape com indicação de ficar na Dona Ivone, em Pedrinhas, uma senhora que aluga um quartinho para os turistas.
Logo que você chega pelo lagamar, avista umas casinhas de madeira, uma fonte “da bica” e o bar do Nelinho, uma lanchonete / mercearia que serve tanto os turistas quanto os próprios caiçaras.
Saí perguntando pela Dona Ivone e parece que ela estava ocupada em uma reunião do conselho dos moradores de Pedrinhas. Deixei pra lá e tentei achar um lugar para dormir. O caiaque carregado pesa uns 28 quilos e não daria pra levar sozinho de manhã para a água se tivesse que guardar longe. Até que um morador me indicou a pousada do pai logo adiante e me recomendou deixar o caiaque à beira-mar, na casa do Seu Irineu, “o Marujo”, figura conhecida, cuida dos barcos do pessoal. Guardei o barquinho e comi um X-Salada no Nelinho, tava varado de fome, pois só tinha comido frutas durante o dia.
Acabou que não gostei muito do local que o rapaz indicou, pousada Maísa. Na verdade é uma lanchonete onde há dois quartinhos que o dono aluga por 50 reais, mas ao abrir estava com piso todo sujo de lama, só tinha luz no banheiro. Agradeci e lá fui eu procurar Dona Ivone que por aquela hora já deveria ter saído da tal reunião.
Perguntei pra duas senhoras na rua onde ficava a casa da Dona Ivone e elas acabaram me levando na casa da associação onde estava tendo o evento. Chegando lá, vejo a Dona Ivone saindo com meia dúzia de moradores. Acabara de ser eleita a Presidente da Associação dos Moradores de Pedrinhas.
Dona Ivone me cobrou R$ 35,00 para alugar o quartinho. Chegando lá me deparei com uma casinha completa, com cozinha e tudo, dentro do terreno da casa dela. Tudo bem simples mas com bastante capricho, limpinho. Tomei um banho e percebi algumas avarias. Meu olho estava muito inchado e quase não abria. Tinha tomado uma picada de borrachudo na pálpebra. Apesar de estar bem protegido do sol, de dry manga longa, chapéu, não repassei o filtro solar o caminho todo e meu pescoço acabou ficando bem vermelho, com mormaço.
No dia seguinte teria que sair mais cedo, pois já tinha passado o Farol da Laje, onde a maré dobra e para ir sentido Cananéia precisaria aproveitar a vazante que começaria perto das 8 hs. Acabei dormindo até mais tarde, pois nesses lugares caiçaras a cama costuma grudar na gente. Nessas horas é vantagem dormir em barraca ou rede e acordar com o sol batendo na cara.
Levantei, arrumei tudo correndo e ao sair, fui convidado para um café na casa da Dona Ivone. Tinha um bolo de banana delicioso e um cafézinho quente, um luxo! Conheci a mãe da Dona Ivone, uma senhora de 96 anos, super lúcida, uma das mais antigas moradoras do bairro.
Fui buscar o barquinho na casa do Seu Irineu, dei umas lichias para ele como agradecimento. Antes de sair o Seu Irineu lembrou que já tinha hospedado um outro cabra com um caiaque verdinnho que ia para o Santa Catarina. Era o Danilo Garcia! Ô cabra famoso! Botei as mochilas pra dentro e pá na água!
O trajeto do segundo dia seria mais curto e eu já tinha feito ele quase todo com o Orlando, entre Cananéia e Juruvaúva, outro bairro caiçara de Ilha Comprida. Era pro Orlando estar junto nessa travessia mas ele ficou enroscado numa reforma no apartamento em SP.
O domingo estava perfeito como no dia anterior, sol com muitas nuvens, temperatura amena, água fresca, mas não havia mais o leste. O caiçara disse que o “lestão” batia junto com a maré enchendo e naquela hora eu estava na vazante.
Foram horas agradáveis de remada, muitas aves, com destaques para os guarás, aves que se alimentam de um tipo de carangueijo vermelho e outros crustáceos e por isso ficam com essa coloração nas penas.
Estiquei bem o primeiro trecho até chegar no bairro São Paulo Bagre, em Cananéia. Lá aportei para comer um lanche.
Já estava bem perto do destino final, porém peguei os últimos 5 km de maré contra (pra aprender a acordar cedo). No último trecho, tentei cortar caminho por uma entrada à direita, um pequeno braço mais estreito que me recordo que certa vez com Orlando, saímos mais adiante.
Ao entrar fui indo adiante e o silêncio foi absoluto, zero vento, zero aves, pouca profundidade, em alguns pontos batia o remo no solo e ele voltava cheio de lama, até que fiz uma primeira curva, uma segunda e só via caranguejos vermelhos, milhares. Parecia que eu tinha morrido e chegara ao céu tamanha paz, porém depois de certa distância percebi que não avistava a saída do outro lado, até que vi que entrei em um braço que apesar de ter longos quilômetros, não haveria saída.
Ao voltar, pouco antes de sair para o lagamar, fui atacado por um enxame de mutucas que pousavam na minha cabeça, se embrenhavam no meu cabelo, batiam no rosto como imbecis desordenados.
Finalmente consegui fugir dos bichos e remei o último km, já com vontade de almoçar, tomar uma cerveja gelada e esticar as pernas. Cheguei ao destino final, a Marina Homem do Mar, no Retiro das Caravelas, ao lado o parque náutico de Cananéia. Falei com o Orlando ainda em Pedrinhas e ele arrumou um lugarzinho para o caiaque lá na marina, que tem uma estrutura muito bacana.
Da um trabalhão desfazer as malas, separar roupa molhada, amarrar o caiaque e meu pai estava fazendo doações de natal na região e só iria me buscar à noite. Abri os compartimentos, fiz uma mochila com o essencial, com câmeras e o pouco que tinha de valor, botei o reminho da werner na capa, mais por ciúme do que por medo de roubarem. Deixei o barquinho lá com quase tudo dentro e saí pela cidade para almoçar e curtir um pouco a tarde na cidade fantástica que é Cananéia.
O saldo da travessia foi positivo, por ter a oportunidade de conhecer intimamente esse trecho bonito do lagamar no fim desse ano, como uma espécie de pausa intencional, meditativa. Uma travessia com muita introspecção, contemplação e tranquilidade.
Por Bruno Marques